quinta-feira, 10 de novembro de 2011

UM SOPRO DE ESPIRITUALIDADE



"A reivindicação de uma igualdade com o homem não é senão a manifestação de uma mentalidade de escravidão. E qualquer mulher que tenha contacto profundo com a sua feminilidade detesta esta posição. Ela não quer parecer-se com o homem. Ela está intimamente persuadida da perfeição do seu estatuto, da sua riqueza biológica e psíquica, da sua nobreza interior.
(…) A verdadeira realização começa com a afirmação de uma diferença não só biológica, mas espiritual."*Femme Solaire - Paul Salomon


É um Sopro de Espiritualidade que falta às feministas na sua luta ainda e que sempre faltou. E é precisamente por isso o mais difícil de aceitar é que se torna tão difícil olhar para as mulheres dentro de uma perspectiva da Deusa. Rejeitando a ideia de religião e o domínio do deus-pater elas rejeitaram também qualquer transcendência em si mesmas...Sobretudo falando das mulheres portuguesas que só começaram a sua luta depois do 25 de Abril - embora tenhamos uma minoria de antes da “revolução e algumas referências de mulheres pioneiras que lhes serviram de base e inspiração. Afastaram-se assim da religião e do catolicismo que as oprimia, mas não viram outra via dentro do Sagrado. Nem sequer alguém se lembraria da Deusa nos anos 60 e 70 por cá…e muito pouco na Europa. (Não fiz nenhuma pesquisa e admito poder estar errada nesse aspecto)
Só muito recentemente (há cerca de 20 anos) as mulheres em Portugal se deixaram aqui e ali aliciar por alguns movimentos supostamente espirituais, por guias, mestres e astrólogos, dentro da perspectiva patriarcal, em que são sistematicamente votadas ao descrédito de forma subtil ou óbvia, e, no entanto, elas aceitam isso e são seguidoras fiéis desses mentores, como o eram dos padres e dos pais, irmãos e maridos…Sem qualquer consciência do feminino em si e do Poder da Mulher.
Ou então, no caso das feministas, ainda presas aos conceitos redutores do marxismo ou do pragmatismo ateísta, ainda que à sua maneira, elas não abdicam de um posicionamento político e militantista. Não há qualquer indício porém de movimentos ecológicos relacionados com o Sagrado Feminino em Portugal. As mulheres, presas ainda aos primeiros movimentos democráticos, dependentes dos partidos socialista ou comunista, que lhes deram cobertura paternalista, sempre dentro do modelo patriarcal, elas não enxergam a forma redutora como a História as tratou e os próprios políticos ainda hoje as tratam em Portugal. Continuam subservientes às ideologias ou filosofias dos homens, ou mesmo até paradoxalmente das mulheres que se salientaram dentro do Sistema (de ensino académico) - as variantes das Faces de Eva - antes ou depois da revolução de Abril, mas sempre dentro do pensamento racionalista, estritamente masculino, com uns laivos de feminino no meio. Claro que tudo isto está em oposição ao feminino essencial, mas o mais grave e absolutamente paradoxal é como elas não vêm que o velho Sistema jamais lhes daria um lugar que não fosse o “direito igual” ao dos homens: poligamia, fazer sexo livre, ir à guerra, ser polícia, bombeiro, ser deputada ou estivadora ou ser prostituta com estatuto legal...
Falta a essas feministas ou activistas um sopro de espiritualidade, que seria um sopro de alma que perderam na convicção dos seus direitos e igualdades...Não venderam a alma ao diabo, como acusaram os padres as suas irmãs bruxas na idade média, não, mas desta vez elas venderam a alma por um estatuto de novas escravas. Iguais aos escravos, são as escravas da guerra, da produção, do consumo e da alienação global do ser sagrado, da natureza e dos animais, do seu ser interior, do ser com alma e coração.

Por tudo isso não vejo nem acredito em nenhum rasgo de evolução do SER MULHER pela sua participação activa na politica, nesta sociedade patrista, porque ela não implica de modo algum uma Consciência verdadeira, ontológica, bem pelo contrário. As mulheres continuam a ser o que sempre foram: objectos de consumo e de prazer ou procriadoras, para chegar agora ao mais aviltante que é serem “barrigas de aluguer” dos casais gays e inférteis. E as próprias feministas não se revoltam com isso, assim como nunca se revoltaram com a prostituição das mulheres, quando muito quiseram legalizar e dar direitos às prostitutas sem considerar o que havia de errado nessa condição e como se prende com toda a mulher essa questão…

O Feminino Sagrado, a Ecologia, como dimensão de uma consciência da vida também sagrada, é essa espiritualidade que falta à mulher e que mais não é do que a sua própria essência, a essência à qual devia ser fiel e servir para lá de todas as barreiras e que lhe foi negada pela história do Homem...Daí que as mulheres que pensam em termos eruditos ou filosóficos fazem-no também, na base do conhecimento racional e intelectual, numa perspectiva cerebral e nunca na base do conhecimento intuitivo emocional...

Falta à Mulher SER Mulher total para se tornar a Mulher iniciadora, a mulher oráculo, a mulher inspirada, instintiva, a mulher que sente o fogo da sua alma, a mulher fonte de amor que é a Amante e a Mãe da Vida, e essa é a única mulher que ainda pode salvar o Planeta da alienação e da miséria.
Essa seria a mulher verdadeira que devia antes de tudo erguer a sua voz, a Voz do oráculo que foi silenciada, condenada ao descrédito durante milénios, a voz do útero, o útero que lhe foi arrancado...as entranhas que lhe foram sugadas, o Voz do verdadeiro oráculo que lhe foi proibido pelas religiões patriarcais e pelos seus filósofos.

A Mulher para voltar a ser uma Mulher autêntica, devia Acordar em si Lilith, a Pítia, a Grande Serpente, a Medusa, a Bruxa, a Sacerdotisa, a Vidente...era essa a Mulher que devia acordar para acordar a Humanidade para resgatar o seu fogo sagrado, a sua origem cósmica!
Só essa Mulher fará a diferença! 

Fonte rosa leonor

terça-feira, 8 de novembro de 2011

HÉSTIA. EXCERTO DE TEXTOS DE ALGUNS AUTORES.

Otilia B. Rosario
"A liberdade interior dos desejos corriqueiros
A libertação da ação e do sofrimento
A liberação da compulsão interior e exterior,
Por uma graça de senso, uma luz branca
tranqüila e em movimento"

(T.S. Eliot)

Genealogia
Para uma melhor compreensão da genealogia de Héstia, a deusa da lareira, recorremos a Hesíodo e a sua teogonia que é ao mesmo tempo a sua concepção da origem do Cosmo.
Segundo esse admirável poeta grego a segunda geração divina tem seu início com a união de Crono e Réia e é deste hierosgamos que são gerados Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon e Zeus.
À semelhança de seu pai, Urano, Crono, foi profeticamente avisado de que um de seus filhos ocuparia o seu lugar, ante essa ameaça, age de forma tão tirânica quanto Urano e engole seus descendentes logo após o nascimento. Indignada com tamanha crueldade, Réia decide salvar o filho mais novo (Zeus) e quando este nasce, coloca em seu lugar uma pedra envolvida em panos que é engolida por Crono.
Réia entrega o filho aos cuidados de Curetes e das Ninfas e este, quando atinge a idade adulta, inicia a luta contra Crono. Propondo-se a libertar os irmãos das entranhas inóspitas do pai, Zeus, seguindo os conselhos de Métis (Prudência) que lhe entrega uma droga maravilhosa, obriga Crono a vomitar os filhos que havia engolido.
Héstia é, portanto, a primeira filha da segunda geração divina e ao mesmo tempo a derradeira por ter sido a última a ser expelida por Crono.
O mito
Héstia, em grego "heuein" (passar pelo fogo, consumir) pertence a mesma família etimológica que Vesta, em latim, cuja fonte é o indo-europeu "wes" (queimar), é a personificação da lareira, venerada pelos gregos no centro do altar, da habitação, da cidade e também da lareira como fogo do centro da terra e do universo.
À semelhança de Atena e Artemis, Héstia é também uma deusa virgem pois embora cortejada por Apolo e Posídon nunca cedeu a qualquer deles, obtendo de Zeus a prerrogativa de guardar para sempre a virgindade.
Por direito de progenitura era uma entre as doze divindades olímpicas principais, mas não fez nenhum protesto quando Dionísio crescendo em proeminência toma o seu lugar entre os doze notáveis do Olimpo.
Entretanto, apesar de sua discrição e de sua preferência pelo anonimato, Héstia foi sempre acumulada de honras não só pelo pai dos deuses, mas por todas as divindades, tornando-se a única deusa cultuada em todas as casas dos homens e nos templos de todos os deuses, pois nenhum lar, nenhum templo ficava santificado sem a sua presença. Héstia era tanto uma presença espiritual como um fogo sagrado que proporcionava iluminação, calor e aquecimento para o alimento.
É a menos conhecida dos deuses olímpicos. Héstia e sua equivalente romana Vesta nunca foram representadas em forma humana, mas sim pela chama viva no centro do lar, do templo, da cidade, sendo seu símbolo um círculo, pois suas primeiras lareiras eram redondas, assim como os seus templos.
Enquanto os outros imortais viviam num vaivém constante, Héstia manteve-se imóvel no Olimpo, essa imobilidade, entretanto, fez com que não representasse papel algum no mito, permanecendo mais como um princípio abstrato, a idéia da lareira, do que como uma divindade pessoal, sobre essa peculiaridade de Héstia, em ser paradoxalmente a primeira do Olimpo e ao mesmo tempo a mais obscura, sobre essa ausência de história a seu respeito, Ovídio assim se refere:
"Durante muito tempo julguei idiotamente que existiam imagens de Vesta: aprendi depois que não existe nenhuma sob sua cúpula abaulada. Sua imagem e seu lugar são idênticos. Não havia imagens em seu templo. Havia apenas o fogo sagrado sobre a terra."
Sua presença era sempre solicitada nos acontecimentos importantes da vida grega, segundo Homero, sem o fogo sagrado de Héstia não haveria festas para a humanidade pois ninguém poderia iniciar o primeiro e o derradeiro gole do vinho doce como mel sem uma oferenda à deusa da lareira.
Quando dois jovens se uniam pelo casamento, a mãe da noiva acendia uma tocha em sua casa e a transportava diante do casal até sua nova casa, para que acendessem a primeira chama em seu lar, tornando-o, por este ato, sagrado. Da mesma forma, cada cidade-estado grega tinha uma lareira comum com um fogo sagrado cultivado no edifício principal, ao redor do qual se congregava o povo. Quando alguém deixava a sua cidade natal, levava consigo o fogo sagrado de tal forma que onde quer que um casal se aventurasse a estabelecer um novo lar , Héstia vinha com eles, ligando o lar antigo ao novo, simbolizando o espírito de continuidade de ligação.
Da mesma forma em Roma a chama sagrada de Vesta unia todos os romanos numa única família. Em seus templos o fogo sagrado era cuidado pelas virgens vestais , que em certo sentido eram as representações humanas de Héstia, eram suas imagens vivas, transcendendo à escultura e à pintura.
As meninas escolhidas para serem vestais eram levadas ao templo, em geral, com menos de seis anos de idade e lá cortavam-se-lhe os cabelos e as vestiam de modo igual e o que quer que fosse distinto e individual que nelas existisse era apagado. Eram mantidas à distância de outras pessoas e honradas, porém deveriam, de modo semelhante à deusa preservar a sua castidade, com terríveis conseqüências para quem violasse as regras impostas.
Uma vestal que tivesse relações sexuais com um homem profanava a deusa e era punida com o sepultamento em vida, numa área pequena e sem ar no subsolo, com luz, óleo, alimento e um lugar para dormir. A terra sobre ela era nivelada, como se nada existisse embaixo.
Héstia e sua relação com Hermes e Apolo
A relação de Héstia com esses deuses não se dá a nível pessoal envolvendo os dramas e tragédias comuns nas ligações que se estabeleciam entre os outros deuses olímpicos, mas sim em termos de uma associação em torno de um espaço sagrado, de um centro, um ponto de convergência, um ponto de aquecimento.
Como já o dissemos, Héstia era venerada no centro das cidades e dos lares gregos e por essa peculiaridade apresentava-se como uma pilha de carvão em brasa, localizada no onphalos (umbigo) de Delfos, cidade consagrada a Apolo considerada o centro do mundo pelos gregos.
Também com Hermes essa deusa compartilha a imagem do fogo sagrado no centro. Hermes (Mercúrio) era o espírito alquímico, imaginado como o fogo elementar . Tal fogo era considerado a fonte do conhecimento intuitivo, simbolicamente localizado no centro da Terra.
Uma outra associação que se pode fazer entre Héstia e Hermes também se refere à sacralização de um espaço. Na Grécia antiga, na parte externa de todos os lares, como uma proteção contra qualquer invasão maléfica existia o "Herma" um pilar que representava Hermes. Vemos assim Hermes e Héstia associados na proteção de um espaço sagrado, enquanto o primeiro protege o exterior a segunda guarda o espaço interior. O pilar e o anel em forma de círculo representam os princípios masculino e feminino respectivamente.
Jean Shinoda Bolen nos lembra que "quando Héstia e Hermes eram honrados nos lares e nos templos, os valores femininos de Héstia eram os mais importantes e ela recebia as mais altas honras. Na época havia uma dualidade complementar. Héstia desde então foi desvalorizada e esquecida. Seus fogos sagrados não são mais cuidados e o que ela representa não é mais honrado.
Quando os valores femininos dessa deusa são esquecidos e desonrados, a importância do santuário interior, da interiorização para encontrar significado e paz, e da família com santuário e fonte de calor ficam diminuídos ou são perdidos. Além disso, o sentimento de uma ligação básica com os outros desaparece, como desaparece também a necessidade dos cidadãos de uma cidade, país ou da terra se ligarem por um elo espiritual comum."
Os símbolos de Héstia:
Simbologia do fogo
Segundo Junito de Souza Brandão, a maior parte dos aspectos simbólicos do fogo está sintetizada no hinduismo. Agni, Indra e Súrya representam as chamas do nível telúrico, do intermediário e celestial, ou seja, o fogo comum, o raio e o sol, existem ainda mais duas representações: Vaishvanara que é o fogo da penetração ou da absorção e o fogo da destruição representado por um outro aspecto do próprio Agni.
Consoante o I Ching o fogo corresponde ao sul, à cor vermelha, ao verão e ao coração, sendo que sob este último aspecto ora pode representar a paixão, ora o espírito ou o conhecimento intuitivo.
Tanto no antigo quanto no novo testamento o fogo é elemento que purifica e limpa, tornando-se o veículo que separa o puro do impuro (essa é também a visão da alquimia), destruindo eventualmente este último.
O fogo sacrificial do hinduismo é substituído por Buda pelo fogo interior, que é simultaneamente conhecimento penetrante, iluminação e destruição do invólucro carnal.
O aspecto destruidor do fogo também comporta uma conotação negativa e o domínio do fogo é também uma função diabólica. Observe-se a propósito da forja: seu fogo é ao mesmo tempo de demiurgo e do demônio.
O fogo tem também o aspecto de regeneração e renovação, em muitas culturas primitivas, os inumeráveis ritos de purificação certamente configuram os incêndios dos campos que se revestem, em seguida, de um tapete verde de natureza viva, não é necessário comentar a correspondência psicológica que essa imagem nos traz.
Segundo Bachelard existem duas direções ou constelações psíquicas na simbologia do fogo, de acordo com sua origem, conforme é obtido pela percussão ou pelo atrito. No primeiro caso está intimamente ligado ao relâmpago, à flecha (portanto ao princípio espiritual) e possui um valor de purificação e iluminação e se opõe nesse sentido ao fogo sexual obtido pela fricção, assim como a chama purificadora se contrapõe ao centro genital da lareira matrilinear, como a exaltação da luz celeste se distingue do ritual de fecundidade agrária. Na sua dimensão simbólica o fogo obtido pela percussão representa a etapa mais importante da intelectualização do cosmo e afasta mais e mais o homem de sua condição animal.
Para os Astecas o fogo terrestre, ctônico representa a força profunda que permite a união dos opostos, a ascensão, a sublimação da água impura em água celestial, a água pura e divina. O fogo é o motor, o grande responsável pela regeneração periódica. O fogo que simboliza Héstia é também ctônico, vindo das profundezas da Terra, é uma chama que nutre ao mesmo tempo que ilumina a vida psíquica.
Simbologia do círculo (um espaço sagrado localizado no centro)
Barbara Kirksey, em seu texto "Héstia um fundamento de enfoque psicológico" introduz seu estudo sobre a deusa com uma pergunta: "Qual o centro para os deuses e para os próprios gregos?" E recorre a Héstia para responder a essa questão, pois que esta era venerada no centro dos lares, das cidades e do mundo, como assim consideravam o onphalos de Delfos.
A importância de Héstia na vida psicológica advém de sua habilidade em mediar a alma, dando-lhe um lugar onde se congregar, um ponto de junção em que a alma e o mundo se misturam.
É através da presença mediúnica de Héstia que a moradia do mundo do homem é psicológica. O ato de imaginar, atividade psicológica por excelência, não está separado do mundo. As moradias que criamos e onde moramos interior (sonhos e fantasias) e exteriormente manifestam um aspecto de nossa alma. A casa mais do que a paisagem é um estado psíquico. As moradias do mundo cotidiano falam dos lugares de nossa alma, revelam um lado íntimo de nossa psique.
A alma sob a perspectiva de Héstia se nos revela em termos de metáforas espaciais, assim a patologia que se manifesta através da linguagem da deusa da lareira contém frases referentes ao espaço: "Fora da base, fora do centro, incapaz de se fixar, distanciada, sem um tapete sob os pés, numa demonstração de que sem os valores de Héstia e do seu poder de integração a alma é incapaz de encontrar um lugar onde morar.
Uma das fantasias relacionadas à patologia da alma e que se faz muito presente desde os povos primitivos é a da perda da alma. Cícero afirmava que a alma doente era aquela que não podia alcançar ou persistir, estava sempre perdida. Quando perdida a alma não tem ligação psíquica com Héstia e sua centralidade. A alma não pode ir para casa porque não há um lugar para se retornar. Nesse contexto a ausência de Héstia representa uma ameaça muito grande para a integridade da psique, com sua multidão de imagens e a influência delas. Sem Héstia não pode haver concentração na imagem e não há limites que distingam a intimidade da moradia interior e do mundo externo, pois não há uma casa psíquica que ofereça paredes protetoras que tornem possível as celebrações da vida, o alimento para a alma.
Sem a presença de Héstia, que se pode observar em certas desordens transitórias da psicose, particularmente das esquizofrenias não existe separação entre os espaços de dentro e de fora, não há barreiras protetoras, que possibilite a permanência das imagens de tal modo que o mundo psíquico todo é vivenciado como transitório e fugaz.
As imagens de sonhos comuns em pacientes esquizofrênicos latentes revelam esse desarranjo profundo em termos de um espaço habitável apresentados imagisticamente como a Terra ou como um edifício. Jung cita algumas dessas imagens tais como: "a terra transformando-se em água, o chão ondulando sob os pés do paciente, o fim do mundo ou as paredes aumentando e curvando-se.
Barbara Kirksey acredita que essa frágil coesão e insegurança está relacionada com a ausência da capacidade mediadora de Héstia, que acolhe e centraliza os acontecimentos aleatórios num espaço comum e aqui cabe relembrar o mito realçando o fato de ser essa deusa a primogênita e ao mesmo tempo a última, espécie de figura alfa-ômega da psique. Sua ausência ameaça toda a estrutura psíquica da personalidade em caos.
Assim como Hermes exerce a função mediadora que conecta e move a alma, também Héstia tem uma função coesiva na alma que preserva o elemento de plenitude e permite ao indivíduo imaginar "em paz"
A lareira redonda de Héstia com um fogo sagrado no centro é uma forma de mandala, símbolo da integridade e da totalidade.
Héstia e sua função de guardiã das imagens
De acordo com o relato de Ovídio, Paládio, uma imagem de Atena em vestes guerreiras, era guardada por Vesta em seu templo localizado em Roma. Tal imagem havia sido roubada de Tróia e acreditava-se que a ela se devia a preservação do império. Vesta foi designada a guardiã dessa imagem de Minerva, graças ao seu poder de iluminação que nunca falha, um poder que tudo vê e que assim preservava com sua luz a integridade do império.
A força de Héstia difere das outras duas deusas virgens Atena e Ártemis, pois enquanto estas manifestam seu poder sob a forma de atos de afirmação, Héstia ilumina e sua luz proporciona proteção e nutrição às imagens.
Jean Shinoda Bolen nos diz ser uma características das deusas virgens a visão e a percepção focada, mas enquanto Atena e Ártemis dirigem sua luz para o exterior, Héstia a direciona para o interior e quando o enfoque se volta para o interior, em direção a um centro espiritual a vida adquire um significado maior, tem-se um ponto de referência interior que nos permite permanecer firmes no meio da confusão, da desordem, da afobação do dia-a-dia.
Quando se fala em capacidade de iluminar, vem-nos à mente a questão do lugar para onde se dirige essa luz, ou seja, qual o seu foco e, segundo Ovídio, a palavra para terra em latim é focus e a terra (focus) em latim é assim chamada por suas chamas e porque ela nutre todas as coisas.
No ramo da ciência que estuda os fenômenos da propagação da luz, a óptica, foco é o ponto no qual os raios se encontram depois de refletidos ou refratados e também o ponto do qual os raios podem originar-se. Foco, portanto, é o ponto de separação e ao mesmo tempo de convergência do raio. A origem desse ponto expressa-se pela figura mítica de Héstia.
Uma outra definição da palavra foco que se associa mais estreitamente com a vida psicológica vem do teatro moderno. No teatro, foco é a parte mais iluminada do palco e é nesse espaço mais iluminado que se desenvolve a trama que dá sentido à peça. Também em nossa vida psíquica aqueles caracteres que aparecem em nossas experiências psicológicas mais brilhantemente iluminados são o foco, que dão sentido ao drama de nossa vida.
Pode-se dizer que Héstia não participa do drama como personagem, como figura, mas é ela que se encarrega da iluminação e se levarmos a sério a crença antiga da proteção através da iluminação é Hestia que nos oferece a proteção necessária para que possamos iluminar e centralizar essas figuras (imagens) nos cenários do nosso consciente.
Uma outra definição que se dá à palavra foco e que também se relaciona com a vida psíquica é a que considera foco como aquele ponto ou posição em que um objeto precisa situar-se, a fim de que a imagem produzida pelas lentes seja clara e bem definida.
Focalizar está em oposição a interpretar a imagem, porque a ação de focalizar prende-se muito mais ao movimento das lentes buscando uma melhor definição da imagem do que a uma mudança de posição desta. O ajuste é, portanto, nosso. A imagem conserva o seu espaço, sendo o processo de focalizar que leva a pessoa a uma relação definitiva com a imagem, a partir da qual esta ganha iluminação e clareza. Retornar à imagem a patir de várias direções é uma tentativa de encontrar o foco, ou seja, isto é uma figuração ao modo de Héstia.
A condição de guardiã das imagens de Héstia faz-nos entrar em conexão com um outro aspecto dessa divindade, o da hospitalidade. Propiciando um lugar de união de congregação, Héstia oferece hospitalidade às imagens, elas são como espíritos que se corporificam ou se personificam através do acolhimento e do aconchego da lareira de Héstia. Personificar é um modo de conhecer é uma possibilidade de se estabelecer um relacionamento fecundo com o inconsciente.
Para encerrar esta compilação de textos de autores conforme bibliografia, anexa, gostaríamos de fazê-lo com algumas estrofes da poesia "Todas as Vidas" de Cora Coralina que sabia como poucos hospedar as imagens, dando-lhes vida, calor e encanto, bem ao modo de Héstia.
Vive dentro de mim Vive dentro de mim
uma cabocla velha a mulher roceira.
de mau olhado, - Enxerto da terra
acocorada ao pé do borralho meio casmurra.
olhando pra o fogo. Trabalhadeira.
Benze quebranto Madrugadeira.
Bota feitiço... Analfabeta.
Ogum, Orixá. Bem parideira.
Macumba,terreiro Bem criadeira.
Ogã, pai-de-santo... Seus doze filhos.
Seus vinte netos..
Vive dentro de mim
a mulher do povo. Vive dentro de mim
Bem proletária. a mulher da vida.
Bem linguaruda, Minha irmãzinha...
desabusada , sem preconceitos tão desprezada,
de casca grossa, tão murmurada...
de chinelinhas, Fingindo alegre seu triste fado.
e filharada.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
A vida mera das obscuras.
BIBLIOGRAFIA:
BOLEN, Jean Shinoda, "As Deusas e a Mulher" – Edições Paulinas – SP 1990
BRANDÃO, Junito de Souza, "Mitologia Grega", volume I - Editora
Vozes – Petrópolis – 1991
CORA CORALINA, "Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais" - Editora
Global - SP – 1985
HILLMAN, James, "Encarando os Deuses"- Editora Cultrix/Pensamento - SP - 1980

Magia para a Lareira

 Como uma Bruxa zeladora do meu lar, resolvim colocar aqui uma benção para o a lareira da casa que hoje em dia é simbolizado pelo  fogão da casa , esse fogo antigo infelismente esta muito esquecido por muitas mulheres infelismente!
Bruxas e mulheres vamos acender a sagrada chama do nosso lar e da nossa familia novamente!
Ass: Danna


Há muito que a lareira é associada com a magia, a superstição e o
oculto. Para os romanos e gregos, ela era um templo humilde, terreno,
onde habitavam deuses e deusas domésticos. Para homenagear essas
deidades, eles mantinham as lareiras acesas com fogos sagrados, que
queimavam noite e dia.
Com o passar dos séculos, fadas, espíritos e duendes tomaram o
lugar das antigas deidades. Incontáveis superstições e fantásticas
lendas folclóricas sobre a lareira e seus habitantes estranhos,
sobrenaturais, surgiram e passaram de geração em geração.
Numa certa época, muita gente acreditava que havia espíritos
benéficos que habitavam na lareira e protegiam a casa e seus
ocupantes dos ladrões, espíritos maléficos e feitiçaria. Ao mudar de
um lugar para outro, a família sempre levava consigo o espírito da
casa para garantir sorte e proteção contínua. Para isso, tiravam um
tição da lareira da antiga moradia e o usavam para acender o fogo da
lareira da nova casa. A palavra "housewarming" origina-se desse
antigo costume oculto.
A lareira sempre foi considerada um lugar muito mágico por
Bruxas e magos, pois é lá que os caldeirões cheios de ingredientes
místicos fervem e borbulham, feitiços são lançados, espíritos do fogo
são invocados, adivinhações têm lugar e augúrios do fogo, da fumaça
e das cinzas são interpretados.
As seguintes plantas eram tradicionalmente queimadas nas lareiras
das Bruxas para tornar a casa perfumada, para lançar feitiços de cura e
para afastar negatividade e doenças: raiz de angélica, anis, cravos (a
especiaria), coentro, língua-de-veado [Frasera speciosa], raiz de
sempre-verde, lavanda, verbena limão, botões de lilás, folhas e galhos
de carvalho, raiz de lírio, alecrim, pétalas de rosa, hipericão, violetas e
gualtéria.
Desde os tempos mais remotos até o presente, as seguintes ervas e
incensos mágicos têm sido queimados em lareiras para repelir
fantasmas, demônios e males: angélica, manjericão, louro, trevo,
cravos (a especiaria), endro, sangue de drago, samambaia,
frankincense, alho, marroio-branco, zimbro, lilás, malva, raiz de
mandrágora, cravo-de-defunto, hortelã, visco, artemísia, raiz de
peônia, arruda, sândalo, selo-de-salomão, hipericão, cardo, verbena e
milefólio.
PARA ABENÇOAR UMA PEDRA DE LAREIRA NUMA CASA
NOVA, você precisa queimar primeiro seis galhos de loureiro ou seis
folhas de um carvalho junto a algumas ervas cheirosas num lugar que
não seja a nova lareira. Pegue as cinzas e misture-as com sal marinho.
Acenda três velas brancas, colocando-as em torno da lareira. Jogue na
lareira uma mão cheia da mistura de sal e cinzas, e diga:
PELO PODER DA DEUSA
E TODOS OS ESPÍRITOS DO FOGO
AGORA CONSAGRO ESTA LAREIRA.
ABENÇOADA SEJA! ABENÇOADA SEJA!
QUE TODOS OS FOGOS QUE AQUI QUEIMAREM
POSSAM ENCHER ESTA CASA COM O CALOR
E A LUZ DO AMOR, SAÚDE
E FELICIDADE ETERNA.
QUE ASSIM SEJA!
PARA IMPEDIR QUE espiritos ruins ENTREM NA CASA PELA
CHAMINÉ, muitas bruxas na Inglaterra e também na Nova Inglaterra
costumavam usar giz ou tinta branca para desenhar três anéis mágicos
simbólicos na lareira. O símbolo do anel, como todos os círculos
mágicos, é uma imagem muito potente, e seu uso como escudo contra
forças perigosas, hostis, remonta a diversas culturas antigas em todo o
mundo. A forma do anel, que não possui começo ou fim, simboliza o
infinito, a perfeição e a renovação constante. Três (o número de anéis)
é um número sagrado, espiritual e extremamente mágico, símbolo da
Deusa Tríplice (Virgem, Mãe, Anciã) e da Lua (crescente, cheia,
minguante). O branco (cor dos anéis) simboliza a Deusa Mãe e
também é a cor da pureza e proteção.

Ritual de Morrigan

Morrigan é uma aliada poderosa para as mulheres que reivindicam os poderes da feminilidade e buscam reafirmação. Ela também protegerá você e lhe dará forças nas batalhas amorosas.
Em caldeirão em uma panela, queime um incenso. Escureça seu quarto ou espere anoitecer. Acenda uma vela preta representando o poder oculto e rebelde da magia de Morrigan.
Entre em estado alterado (alfa) e queime o incenso de forma que a fumaça seja bem forte. Consulte a fumaça e inale seu poder aromático. Após vários minutos, sentirá a presença de Morrigan no quarto com você, talvez do seu lado ou dentro de você. Ela também consulta a fumaça e sente seu doce perfume.
Diga para si mesma:

"Eu sou a bruxa que fica abaixo da Lua.
Sou o rugido do Oceano.
Sou a Senhora da Soberania.
Sou a chuva nas folhas.
Sou as estrelas que brilham no Céu.
Sou a vidente da sorte.
Sou uma guerreira forte com minha espada.
Sou a mãe cigana, cheia de leite.
Sou a mulher das coxas fortes.
Ensino os mistérios da cama.
Sou o prazer dos corpos que se unem.
Sou a bruxa que conhece a força do amor.
Sou Morrigan.
Sempre vivi.
Já fui tudo."

Você pode incluir suas próprias invocações e reafirmá-las do melhor modo que lhe convier. Repita várias vezes essa invocação ou a sua, pois a repetição é que cria o cântico que leva ao transe. Em transe, podemos nos transmutar na consciência de Morrigan e como que por osmose também nos tornamos Senhoras da Magia. Em nível psíquico, você já é. E sabe que é.
Quando tiver se transformado em Morrigan, passe o tempo que quiser, ou o tempo que conseguir manter o estado alterado de consciência, vigiando o caldeirão, acrescentando incenso e consultando-o além das ondas de fumaça. Consulta-se a fumaça observando suas mudanças e informações.
Faça suas perguntas, declare suas intenções, procure a sabedoria.
Quando você perceber que está voltando ao seu estado normal de consciência, conclua o transe dizendo um ou dois versos invocadores que ache mais apropriado, tipo:

"Sempre vivi.
Já fui tudo".

Em seguida, dê por encerrado o ritual e reflita sobre tudo que viu e sentiu.

Texto pesquisado e desenvolvido por
Rosane Volpatto

sábado, 5 de novembro de 2011

A Grande Deusa Vaca

Com seu aspecto simples de um líquido branco, o leite é um dos alimentos mais complexos da natureza. Representa um equilíbrio entre a solução aquosa, emulsão fina de glóbulos de gordura e uma suspensão coloidal de proteínas com algumas partículas gasosas - gás carbônico e oxigênio.
No alvorecer da humanidade, pequenos grupos humanos vagavam pela terra em busca de alimento. Alimentavam-se principalmente de vegetais, frutas, raízes e animais de pequeno porte. Quando grupos humanos se deslocaram para regiões mais ao norte, onde a vegetação é menos abundante e o clima mais severo, surgiu a necessidade de caçar animais de grande porte que, como eles próprios, se deslocavam livremente em busca de pastagens. Habitando um mundo ainda unitário, estes grupos humanos partilhavam os recursos alimentares com outros animais, carnívoros ou não.
Destes tempos remotos, nossos ancestrais nos legaram pinturas rupestres, algumas datando de 30 milênios. As inscrições em cavernas do paleolítico, abundantes em figuras de animais, entre eles cavalos, bisontes, mamutes e até rinocerontes, além de uma infinidade de pequenas estatuetas femininas encontradas em sítios arqueológicos, nos informam que estes grupos, que se deslocavam em busca de alimento, cultuavam uma divindade feminina, que foi denominada simplesmente de Senhora dos Animais. Escreve Joseph Campbell em As Máscaras de Deus, que “a deusa que acabou de se revelar no próprio alvorecer do primeiro dia da nossa espécie já estava acompanhada de sua bem conhecida corte” de animais,definindo sua personalidade e exemplificando seu poder.
A posição de destaque da deusa como Senhora dos Animais é expressa por sua dimensão com relação às demais figuras que a acompanham, como pode ser visto em uma cena na caverna de Lascaux, na França, onde ela aparece acima de três cavalos que, juntos, correspondem ao tamanho dela. Além disso, as figuras femininas ocupam o centro das representações, indicando que os símbolos femininos desempenhavam um papel central na concepção de mundo destes grupos humanos.
Com o tempo, eles deixaram de lado a caça e adotaram um modo de vida pastoril. O primeiro passo em direção a esta mudança, escreve Humberto Maturana em Amar e Brincar, “foi a operação inconsciente que constitui a apropriação”, em que uma família humana definiu uma manada como sua propriedade, impedindo o acesso de outros animais e famílias humanas a esta fonte de alimento.
A perda da liberdade dos animais de manadas, ao serem domesticados e transformados em animais de rebanho, teve um efeito profundo também na vida dos humanos, alterando sua visão de mundo, suas emoções, suas crenças. Juntamente com o emocionar característico de uma postura de apropriação, diz Maturana, surgem emoções como a inimizade, a valorização da procriação como fonte de riqueza e poder, a definição de hierarquias e regras de obediência. A procriação animal teve seus reflexos na posição das mulheres como procriadoras, que também passaram a ser controladas pelos homens, donos do rebanho. Estavam plantadas as raízes do patriarcado.
Assimilada à cultura pastoril, encontramos inicialmente a Senhora dos Animais como a deusa-vaca amamentando seu bezerro. Mas, se nas imagens pintadas nas paredes das cavernas do paleolítico, a ênfase recai sobre a grande deusa-mãe, à medida que o pastoreio se impõe como cultura predominante, seus mitos se tornam menos notáveis, afirma Buffie Johnson em The Lady of the Beasts, por datarem de tempos anteriores à escrita, tendo sido alterados pelas religiões posteriores, até se tornarem quase irreconhecíveis.
Apesar disto, em praticamente todas as civilizações antigas, vamos encontrar uma íntima relação entre os bovinos e os seres humanos, com a vaca fornecendo o leite e o boi dando sua força nas atividades de tração e aração. Composta de grandes pastadores, a tribo Bovini inclui animais de significativa importância econômica, como gado doméstico, o búfalo, o iaque, assim como parentes asiáticos menores, e grandes bovinos selvagens como o búfalo-africano e o bisonte americano.

Surabhi – a deusa-vaca hindu

Na civilização védica da Índia milenar, essa integração entre humanos e bovinos tornou-se uma das características principais da cultura. Nos Vedas, textos sagrados hindus, vamos encontrar a mesma palavra para designar a vaca e o planeta terra: a palavra sânscrita ‘gau.’
O mais antigo de todos os livros sagrados, o Rig Veda, é um livro de homens sobre questões masculinas, em um mundo dominado por homens, escreve Wendy Doniger O’Flaherty em The Rig Veda. Uma Antologia. Nele, as deusas não têm uma posição de destaque e as mulheres são importantes enquanto coisas a serem possuídas, como gado. E apesar do leite ser o símbolo primário da procriação, as figuras procriadoras são homens.
Mesmo assim, vamos encontrar a deusa-vaca Surabhi como a fonte de leite e coalho, uma das grandes forças criadoras do universo. Em Filosofias da Índia, Heinrich Zimmer afirma que o “material divino, que compõem o universo vivo e suas criaturas, é revelado como alimento e sua porção manifestada é apenas o produto de uma única ordenha da sublime fonte, a grande vaca malhada.” A idéia do alimento como o princípio supremo, o material divino que compõe o universo, é exposto no Yajur-Veda: “Eu, o alimento, sou a nuvem que toveja e chove. / Eles [os seres] alimentam-se de mim. Eu me alimento de tudo. / Eu sou a real essência do universo, imortal. / Por minha força, todos os sóis do céu estão acesos.”
Nos Vedas, como em todas as civilizações indo-européias, escreve O’Flaherty em Women, Androgynes and Other Mythical Beasts [Mulheres, Andróginos e Outros Animais Míticos], o gado é a medida de riqueza e o símbolo de tudo que se deseja possuir. O leite, como alimento básico, é também a origem da vida, a seiva vital denominada de Soma, a substância tirada do oceano de leite primordial, oriunda da vaca mítica, que proporciona abundância e realiza todos os desejos dos seres humanos.
Como a vaca mítica, Surabhi remete à grande deusa da vida e da morte, que está na origem do universo. No Atharva Veda lemos que Prithu, filho do Rei Vena, ordenhou a vaca da abundância, usando para isto o primeiro ser humano, na função do bezerro. Além do leite, a ordenha da vaca também forneceu o cultivo da terra e o próprio grão. Mais do que alimento, dela também surgem, por meio da ordenha, os grandes conflitos que devem ter se manifestado na vida destes povos pastores, pois esta mesma vaca foi ordenhada pelos demônios, que tiraram dela a ilusão. Depois, os deuses a ordenharam para tirar dela força. Finalmente, ela foi ordenhada pelas serpentes, que tiraram dela veneno.
Se você quiser ter sucesso, prosperidade, expansão e liberdade, aconselha o capítulo 49 do Nono Livro do Devi Bhagavatam, entoe seu mantra: “Om Surabhyai namah”, especialmente na manhã do dia seguinte à lua nova de outubro. Pois Surabhi é a Mãe do Mundo como deusa-vaca, que realiza os desejos de seus devotos e purifica todo o universo com seu leite que, mais doce do que o néctar, previne o nascimento e a morte!

Audumla – a deusa-vaca nórdica

Também entre os povos nórdicos, vamos encontrar a deusa-vaca como ancestral da vida e símbolo da fecundidade. De seu úbere fluíram os quatro rios primordiais, os quatro jorros de leite, que alimentaram a mais antiga raça de seres. Relata o poema éddico Voluspá [A profecia da Sábia] que, no início, havia frio e escuridão no norte, calor e luminosidade no sul, e entre eles havia apenas um grande precipício vazio, chamado Ginnungagap. Nesses tempos primordiais, não havia nem céu nem terra, nem deuses e nem um único tufo de grama.
A região ao norte, Niflheim, era o lugar da neblina e do frio, de cuja fonte central afluíam onze rios salgados e venenosos, que se lançavam com estrondo no precipício, onde se solidificavam como pedras congeladas. Por cima de tudo se depositava a espuma em forma de geada.
Na região ao sul, Muspellheim, ardia o fogo em labaredas, que lançavam faíscas no precipício, suavizando o frio. Ventos quentes derretiam o gelo e havia um incessante assobiar, pingar e chuviscar, até que os pingos, vivificados pela força do fogo, formaram um ser primordial, o gigante de gelo Ymir.
E enquanto o calor continuava a derreter o gelo, eis que da geada surge uma vaca sem cornos, abundante em leite, do qual se alimentou Ymir. A própria vaca primordial, Audumla, se nutria dos blocos salgados de gelo. Com seu leite abundante, ela alimentou não apenas Ymir, mas também os demais gigantes e seres divinos.

Hathor – a deusa-vaca egípcia

No Egito, vamos encontrar a deusa-vaca no mais antigo documento histórico que registra a passagem da pré-história para o tempo histórico, dominado pelos faraós. A Paleta de Narmer é dedicada a Hórus como filho de Hathor, que aparece em seus quatro cantos como a cabeça da deusa-vaca. “Você é um filho da Grande Vaca Selvagem. Ela te concebe, ela te gesta, ela te coloca entre suas asas”, lemos nos Textos das Pirâmides.
A civilização egípcia parece ter surgido da confluência de várias culturas, cuja formação ainda é alvo de controvérsias.
Sabe-se que, por volta de 10 mil antes do tempo comum, tribos nômades européias entraram na então vicejante savana africana, por uma ponte entre a península itálica e o norte da África, indo no encalço das manadas. Com a mudança do clima e a formação do deserto, teriam se deslocado em direção ao delta do Nilo, onde se estabeleceram por volta de 5000 antes do tempo comum.
Inscrições rupestres, descobertas em uma face de rocha de um platô hoje quase inacessível no deserto do Saara, testemunham sua passagem. Então uma savana florescente, em torno de 7000 a.t.c., as inscrições mostram a deusa cornuda, que aparece posteriormente nos Textos das Pirâmides simplesmente como ‘A Grande Ela’. A mais antiga divindade do Egito arcaico, ela continua presente na posterior era faraônica, como os cornos da vaca que portam o sol, representação comum das deusas egípcias em seu aspecto materno.
Na mesma época, grupos pastoris vindos do Crescente Fértil e seguindo pela linha costeira do Mediterrâneo cruzaram o Sinai e entraram no delta do Rio Nilo, trazendo com eles gado e um tipo de trigo duro vermelho, previamente desconhecido no continente africano.
Ao mesmo tempo, seguindo os afluentes do Nilo na direção norte, tribos oriundas do Sudão e da Etiópia trouxeram consigo uma agricultura insipiente, consistindo em espalhar sementes em lugares férteis e retornando depois para colher os grãos. Também trouxeram uma deusa celeste, conhecida como a Deusa Pássaro Dançante que, provavelmente, está na origem do mito das águas primordiais, responsáveis pelas cheias do Rio Nilo. A fonte destas águas são as chuvas torrenciais que caem do céu na Núbia, mais especificamente nas altas montanhas da Etiópia, em torno do lago Tana.
Inicialmente uma série de pequenas províncias localizadas ao longo do Rio Nilo, cada qual com suas próprias divindades, foi apenas por volta de 3000 antes do tempo comum, quando uma nova leva migratória veio do leste através de uma passagem nas montanhas perto de Abidos, que surge o Egito dinástico.
Hathor parece ser a fusão de várias deusas primordiais. Em sua forma de vaca, ela cria a via Láctea de seu úbere, de onde também surgem as águas primordiais que alimentam o transbordamento do Nilo e, com isto, todo o povo egípcio. Como deusa de países estrangeiros montanhosos ou desérticos, parece remeter a Ninhursaga, a grande mãe primordial do panteão sumeriano. Como a Grande Mãe da Vida e da Morte, ela emerge da árvore para nutrir os mortos. Ela é a Grande Amorosa, a deusa-vaca que fornece amparo, cura e renascimento.
Apesar dos mitos da deusa-vaca terem sido distorcidos e apagados, os cornos da vaca continuam transbordando com os frutos da terra, símbolo de fertilidade e abundância, como mostra a cornucópia, um dos emblemas romanos favoritos da deusa-mãe.