Simbolismo da Deusa nos dias atuais
É exatamente como promessa de futuro que reaparecem o simbolismo da Grande Deusa e a história das culturas matrifocais. Ambos têm se revelado como uma fonte inesgotável de reflexão e de inspiração para muitas mulheres modernas. O símbolo da Deusa, como comenta Carol Christi:
Tem muito a oferecer às mulheres que lutam para liquidar aqueles estados de ânimo e aquelas motivações potentes, persuasivas e persistentes de desvalorização do poder feminino, de desconfiança na vontade feminina e de negação dos vínculos e do patrimônio cultural das mulheres que foram gerados pela cultura patriarcal. E visto que as mulheres estão lutando para criar uma cultura nova na qual são celebrados o poder, os corpos, a vontade e os vínculos das mulheres parece natural que volte à tona a Deusa como símbolo de renovada beleza, força e poder das mulheres. (mimeo)
Embora a Deusa não seja o equivalente da mulher, no seu simbolismo encontra-se presente muito daquilo que constitui o mais profundo do ser feminino, o que permite às mulheres uma identificação mais imediata com o arquétipo. Através desse processo de identificação, aspectos de suas vidas ignorados, marginalizados ou evitados pelas religiões patriarcais são resgatados e elas se tornam aptas a compreender e reverenciar a sacralidade da sua vida e do seu corpo. Como se pode perceber na fala abaixo:
O conceito de uma religião que venerava uma Deusa era surpreendente e poderoso. Tendo sido criada como judia, fui muito religiosa quando criança e prossegui minha educação judaica até um nível avançado. Mas, quando atingi o estágio de jovem adulta, ao final dos anos 60, algo parecia estar faltando. O movimento feminista ainda não havia renascido e eu desconhecia a palavra ’patriarcado’ mas sentia que a tradição, assim como se apresentava então, carecia de alguma maneira de modelos para mim enquanto mulher bem como de caminhos para o desenvolvimento do poder espiritual feminino
(...). A tradição da Deusa oferecia novas possibilidades. O meu corpo, agora, em toda a sua feminilidade, seios, vulva, útero e fluxo menstrual eram sagrados. A força primitiva da natureza e o intenso prazer da intimidade sexual assumiram papéis centrais como caminhos para o sagrado, em vez de serem negados, denegridos ou encarados como periféricos. (STARHAWK. 2001: 13).
O simbolismo da Deusa implica na aceitação da materialidade e da corporeidade da vida como sagradas. Como salienta Rachel Pollack, “encontramos o corpo da Deusa no nascimento, na menstruação e na alegria do sexo, mas o encontramos também na morte e na doença, uma vez que estas não são vistas como erros ou punições, mas como parte da existência”. (1998:48).De fato, aceitar o corpo como sagrado implica em lidar de outra maneira com a nossa própria corporeidade. Afinal, quando “consideramos Deus como perfeito, imortal e imutável, a morte torna-se uma violação, uma marca da nossa distância de Deus”. (IDEM: 49). Ao contrário, quando consideramos Deus ou a Deusa como algo encarnado nos mistérios da vida, a morte pode ser reinserida em seu lugar na dança cósmica e recuperar a sua sacralidade. Diferentemente do Deus-Pai transcendente, desincorporado e afastado da matéria, a Deusa tem um corpo que é o mundo físico: o céu, a terra, as águas e o submundo. Esta concepção do divino dispensa intermediações, a Deusa – a imanente – está em tudo e é tudo. Todas as coisas: das pedras às árvores passando pelos seres humanos são a Deusa, suas manifestações, suas muitas formas de existir. Ao invés do dualismo criador x criatura – característico das religiões patriarcais – temos aqui uma concepção que vê o divino como algo que está dentro da matéria física reforçando a importância da ecologia e do corpo.
O grande potencial de aglutinação inerente ao simbolismo da Deusa deu origem, nos últimos anos, a um movimento amplo e diversificado conhecido como “Espiritualidade Feminista”. No seu âmbito, muitas mulheres exploram o poder inerente ao sagrado feminino. Algumas delas atuam no contexto do Cristianismo ou do Judaísmo. Outras utilizam as tradições da Deusa provenientes de várias culturas distintas sem se identificarem obrigatoriamente com uma religião específica, e outras ainda, recriam a religião da Grande-Mãe buscando construir um enfoque adequado para os tempos modernos. A mais difundida dentre estas recriações é a Wicca – também conhecida como Bruxaria, Feitiçaria ou Religião da Deusa – que se afirma como uma espécie de reinterpretação da religiosidade do Neolítico, como declara este sacerdote:
A Wicca para mim é um resgate da experiência religiosa primeva. Aquela que se manifestou na escavação do primeiro túmulo humano, na produção plástica das estatuetas da Grande Mãe (as inúmeras Vênus européias e africanas) e nas pinturas rupestres. Daí a sua liberdade maior que as demais formas de Paganismo: ela pode transitar tranqüilamente por diferentes panteões, pois vê, em todos eles, um desenvolvimento arquetípico da mesma Deusa e do mesmo Deus.
Na thealogia da Wicca, a Deusa possui uma predominância marcante. Embora haja diferenças profundas entre as muitas tradições, em todas, Ela é vista como “a Criadora”, uma vez que, na sua concepção, a criação é um processo de nascimento no qual a Deusa prenhe de si mesma dá a luz ao mundo – incluindo o Deus, seu filho e amante – que é também ela mesma. Esta centralidade do culto à Deusa constitui a característica distintiva da Wicca, como explica esta sacerdotisa:
Quando você vai falar do Druidismo, por exemplo, você fala de uma religião da terra, mas você ainda vai ter um sistema mágico-solar, ou seja, ele é centrado, de certa maneira, no Pai. Ele respeita a Mãe, ele celebra a Mãe, mas ele não é centrado na Mãe. Quando você vai falar do Xamanismo é a mesma coisa, o conceito de Grande Espírito se sobrepõe a um conceito de Deusa. Quando você chega à Wicca, especialmente nas vertentes mais diânicas, a visão é diferente e a Deusa assume um papel preponderante. A Wicca é a religião da Deusa e do Consorte. É um caminho mágico lunar e feminino. Toda Wicca o é, a Diânica também, mas não só ela. Se não se tratar de um caminho lunar e feminino não é Wicca.
Mesmo assim, a Deusa, na perspectiva wiccana, não é concebida apenas como a mãe benevolente. Para seus adeptos, a criação é um processo contínuo, uma dança entre criação e destruição na qual formas antigas se dissolvem e novas são construídas. A veneração desse aspecto da Deusa funciona também como uma reação à concepção patriarcal do poder da mulher, vinculado exclusivamente à sua capacidade geradora.. Desta maneira, para as bruxas feministas, a Deusa é vista como:
A criadora do universo, mas também como destruidora, pois, no fundo, todos os atos de criação são também atos de destruição. Ela vem de muitas culturas. Ela é às vezes representada como o sol (luz) ‘ativo’ ao invés da lua (sombra) ‘passiva’. Ela é a guerreira que protege o Seu povo. Ela é Ereshkigal bem como Inanna. Ela é Kali, Ela é Venus, Ela é Freya. Todas as criaturas são Suas e a Terra é o Seu corpo. Suas energias estão ao nosso redor na forma de rios, raios e ventos, criando e destruindo constantemente.
Ainda que documentada e ancorada em pesquisas realizadas em múltiplos campos – arqueologia, história, mitologia, história das religiões, etc. – a reconstrução sobre as culturas da Deusa tem, claramente, o caráter de uma hipótese de trabalho. Não podemos ter certeza do que pensavam e sentiam os nossos antepassados pré-históricos e nem é este é o ponto central da discussão. O ponto é que a recuperação da história das mulheres e a reconstrução do passado pela ótica feminina têm muito a dizer aos homens e mulheres de hoje. Pode oferecer uma alternativa para as relações entre os sexos no mundo contemporâneo e contribuir para criar novos padrões de relacionamento entre o homem e o mundo natural.
É exatamente como promessa de futuro que reaparecem o simbolismo da Grande Deusa e a história das culturas matrifocais. Ambos têm se revelado como uma fonte inesgotável de reflexão e de inspiração para muitas mulheres modernas. O símbolo da Deusa, como comenta Carol Christi:
Tem muito a oferecer às mulheres que lutam para liquidar aqueles estados de ânimo e aquelas motivações potentes, persuasivas e persistentes de desvalorização do poder feminino, de desconfiança na vontade feminina e de negação dos vínculos e do patrimônio cultural das mulheres que foram gerados pela cultura patriarcal. E visto que as mulheres estão lutando para criar uma cultura nova na qual são celebrados o poder, os corpos, a vontade e os vínculos das mulheres parece natural que volte à tona a Deusa como símbolo de renovada beleza, força e poder das mulheres. (mimeo)
Embora a Deusa não seja o equivalente da mulher, no seu simbolismo encontra-se presente muito daquilo que constitui o mais profundo do ser feminino, o que permite às mulheres uma identificação mais imediata com o arquétipo. Através desse processo de identificação, aspectos de suas vidas ignorados, marginalizados ou evitados pelas religiões patriarcais são resgatados e elas se tornam aptas a compreender e reverenciar a sacralidade da sua vida e do seu corpo. Como se pode perceber na fala abaixo:
O conceito de uma religião que venerava uma Deusa era surpreendente e poderoso. Tendo sido criada como judia, fui muito religiosa quando criança e prossegui minha educação judaica até um nível avançado. Mas, quando atingi o estágio de jovem adulta, ao final dos anos 60, algo parecia estar faltando. O movimento feminista ainda não havia renascido e eu desconhecia a palavra ’patriarcado’ mas sentia que a tradição, assim como se apresentava então, carecia de alguma maneira de modelos para mim enquanto mulher bem como de caminhos para o desenvolvimento do poder espiritual feminino
(...). A tradição da Deusa oferecia novas possibilidades. O meu corpo, agora, em toda a sua feminilidade, seios, vulva, útero e fluxo menstrual eram sagrados. A força primitiva da natureza e o intenso prazer da intimidade sexual assumiram papéis centrais como caminhos para o sagrado, em vez de serem negados, denegridos ou encarados como periféricos. (STARHAWK. 2001: 13).
O simbolismo da Deusa implica na aceitação da materialidade e da corporeidade da vida como sagradas. Como salienta Rachel Pollack, “encontramos o corpo da Deusa no nascimento, na menstruação e na alegria do sexo, mas o encontramos também na morte e na doença, uma vez que estas não são vistas como erros ou punições, mas como parte da existência”. (1998:48).De fato, aceitar o corpo como sagrado implica em lidar de outra maneira com a nossa própria corporeidade. Afinal, quando “consideramos Deus como perfeito, imortal e imutável, a morte torna-se uma violação, uma marca da nossa distância de Deus”. (IDEM: 49). Ao contrário, quando consideramos Deus ou a Deusa como algo encarnado nos mistérios da vida, a morte pode ser reinserida em seu lugar na dança cósmica e recuperar a sua sacralidade. Diferentemente do Deus-Pai transcendente, desincorporado e afastado da matéria, a Deusa tem um corpo que é o mundo físico: o céu, a terra, as águas e o submundo. Esta concepção do divino dispensa intermediações, a Deusa – a imanente – está em tudo e é tudo. Todas as coisas: das pedras às árvores passando pelos seres humanos são a Deusa, suas manifestações, suas muitas formas de existir. Ao invés do dualismo criador x criatura – característico das religiões patriarcais – temos aqui uma concepção que vê o divino como algo que está dentro da matéria física reforçando a importância da ecologia e do corpo.
O grande potencial de aglutinação inerente ao simbolismo da Deusa deu origem, nos últimos anos, a um movimento amplo e diversificado conhecido como “Espiritualidade Feminista”. No seu âmbito, muitas mulheres exploram o poder inerente ao sagrado feminino. Algumas delas atuam no contexto do Cristianismo ou do Judaísmo. Outras utilizam as tradições da Deusa provenientes de várias culturas distintas sem se identificarem obrigatoriamente com uma religião específica, e outras ainda, recriam a religião da Grande-Mãe buscando construir um enfoque adequado para os tempos modernos. A mais difundida dentre estas recriações é a Wicca – também conhecida como Bruxaria, Feitiçaria ou Religião da Deusa – que se afirma como uma espécie de reinterpretação da religiosidade do Neolítico, como declara este sacerdote:
A Wicca para mim é um resgate da experiência religiosa primeva. Aquela que se manifestou na escavação do primeiro túmulo humano, na produção plástica das estatuetas da Grande Mãe (as inúmeras Vênus européias e africanas) e nas pinturas rupestres. Daí a sua liberdade maior que as demais formas de Paganismo: ela pode transitar tranqüilamente por diferentes panteões, pois vê, em todos eles, um desenvolvimento arquetípico da mesma Deusa e do mesmo Deus.
Na thealogia da Wicca, a Deusa possui uma predominância marcante. Embora haja diferenças profundas entre as muitas tradições, em todas, Ela é vista como “a Criadora”, uma vez que, na sua concepção, a criação é um processo de nascimento no qual a Deusa prenhe de si mesma dá a luz ao mundo – incluindo o Deus, seu filho e amante – que é também ela mesma. Esta centralidade do culto à Deusa constitui a característica distintiva da Wicca, como explica esta sacerdotisa:
Quando você vai falar do Druidismo, por exemplo, você fala de uma religião da terra, mas você ainda vai ter um sistema mágico-solar, ou seja, ele é centrado, de certa maneira, no Pai. Ele respeita a Mãe, ele celebra a Mãe, mas ele não é centrado na Mãe. Quando você vai falar do Xamanismo é a mesma coisa, o conceito de Grande Espírito se sobrepõe a um conceito de Deusa. Quando você chega à Wicca, especialmente nas vertentes mais diânicas, a visão é diferente e a Deusa assume um papel preponderante. A Wicca é a religião da Deusa e do Consorte. É um caminho mágico lunar e feminino. Toda Wicca o é, a Diânica também, mas não só ela. Se não se tratar de um caminho lunar e feminino não é Wicca.
Mesmo assim, a Deusa, na perspectiva wiccana, não é concebida apenas como a mãe benevolente. Para seus adeptos, a criação é um processo contínuo, uma dança entre criação e destruição na qual formas antigas se dissolvem e novas são construídas. A veneração desse aspecto da Deusa funciona também como uma reação à concepção patriarcal do poder da mulher, vinculado exclusivamente à sua capacidade geradora.. Desta maneira, para as bruxas feministas, a Deusa é vista como:
A criadora do universo, mas também como destruidora, pois, no fundo, todos os atos de criação são também atos de destruição. Ela vem de muitas culturas. Ela é às vezes representada como o sol (luz) ‘ativo’ ao invés da lua (sombra) ‘passiva’. Ela é a guerreira que protege o Seu povo. Ela é Ereshkigal bem como Inanna. Ela é Kali, Ela é Venus, Ela é Freya. Todas as criaturas são Suas e a Terra é o Seu corpo. Suas energias estão ao nosso redor na forma de rios, raios e ventos, criando e destruindo constantemente.
Como “Mãe mais-do-que-humana” a Deusa sabe que, embora a vida deva ser preservada, esse imperativo não se refere à da vida individual, seja a de uma pessoa, seja a de uma espécie. Afinal, embora seja nossa mãe e nosso lar, a Terra também é ameaçadora, tanto doadora quanto tomadora de vida, conforme lembra esta entrevistada:
A Deusa não tem dó nem piedade da humanidade. Existe um jeito de encarar a Deusa no qual Ela é chamada “A preservadora”. Se Ela realmente precisar, ela vai cortar qualquer coisa da própria carne Dela e vai destruir o que quer que seja para que aquilo não continue destruindo o resto. Talvez, um dia, sejamos nós. E a Vida vai continuar em outras condições.
A Deusa não tem dó nem piedade da humanidade. Existe um jeito de encarar a Deusa no qual Ela é chamada “A preservadora”. Se Ela realmente precisar, ela vai cortar qualquer coisa da própria carne Dela e vai destruir o que quer que seja para que aquilo não continue destruindo o resto. Talvez, um dia, sejamos nós. E a Vida vai continuar em outras condições.
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