De Perséfone a Inana. A busca de si mesma>>
Deméter, a grande deusa-mãe dos povos agrícolas europeus do período neolítico, corporifica a percepção de um mundo em que todas as coisas coexistem em um sistema coerente de abundância harmônica, numa rede sem fim de ciclos de nascimento e morte. A continuidade da vida era assegurada pelo cultivo coletivo da terra e o cíclico morrer e renascer do grão.Como deusa dos frutos da terra, especialmente das terras cultivadas, o símbolo maior de Deméter é a espiga de trigo. Seus ritos festejam a fertilidade da terra que produz o alimento para nutrir todos os seus rebentos, sendo especialmente relacionados com os mistérios femininos.
Inseparável de Deméter é sua filha Core, o broto em que renasce a planta-mãe, assegurando a continuidade da vida. Mas, com a vinda das tribos pastoris e sua concepção patriarcal, esta continuidade entre a deusa-mãe e sua filha-broto é rompida, conforme nos relata o mito.
Core, a jovem filha de Deméter, costumava brincar livre, leve e solta pelas campinas, em companhia de suas companheiras, colhendo rosas, açafrão, belas violetas, íris e jacintos, quando um dia se deparou com um narciso especialmente atraente, de cuja raiz brotavam centenas de florações, exalando um aroma tão doce, que todos no céu, na terra e no mar sorriam maravilhados.
Nos relata o hino homérico a Deméter, que o narciso havia sido criado por Gaia especialmente para atrair a jovem florescente, de quem se havia apaixonado Hades, o Senhor do Mundo Profundo, tendo recebido autorização de Zeus para raptá-la, sabendo ambos que Deméter jamais concordaria com isto.
Atraída para a bela flor, Core se aproximou para colhê-la, quando então a terra se abriu e ela se viu levada para o mundo profundo, não sem gritar por ajuda da mãe. Esta, tendo ouvido o chamado da filha, percorre o mundo à sua procura, sem sucesso. Enlutada, finalmente refugia-se em Eleusis, deixando a terra fria e devastada. As sementes não germinavam, as flores não se abriam, as espigas de cereal não amadureciam, nem as árvores davam frutos.
Todos os apelos para demover a deusa foram infrutíferos; apenas quando tivesse sua filha de volta, a terra voltaria a vicejar. Não tendo outra alternativa, Zeus enviou Hermes ao Mundo Profundo, com a ordem para que trouxesse de volta a jovem, cuja tristeza se dissipou imediatamente ou ouvir a notícia. Tão feliz ficou, que até se dispôs a comer as sementes de romã que Hades lhe ofereceu sorrateiramente.
Quando mãe e filha se avistaram, a alegria retornou para o mundo. Mas como todos os eventos que mereceram ser mitificados, esta experiência causa uma profunda transformação na jovem donzela, que não retorna simplesmente como Core, mas passa a ser cultuada como Perséfone, a Rainha do Mundo Profundo. E como tal, de tempos em tempos precisa voltar ao seu reino.
A história do rapto de Core nos revela um mundo em que o feminino em sua juventude já está submetido ao poder e à autoridade masculina, restando-lhe apenas esperar pela ajuda do feminino maduro que, por sua vez, precisa recorrer à resistência teimosa para atingir os seus objetivos e, mesmo assim, atinge-os apenas parcialmente.
Se nos deslocarmos no espaço e recuarmos no tempo, vamos encontrar um mito em que a jovem donzela ainda é capaz de decidir seu próprio destino. No terceiro milênio antes do tempo comum, na região conhecida como Mesopotâmia, vamos encontrar o mito sumério de Inana, a jovem deusa que, por iniciativa própria, desce ao mundo profundo para encontrar sua irmã escura, uma parte perdida de si mesma.
Entre os poemas ou hinos dedicados a Inana, encontramos aqueles que cantam o cortejar do jovem pastor Dumuzi pelas graças da jovem deusa, assim como os hinos que a festejam como o armazém, onde são guardados os frutos da colheita e onde é realizado o casamento sagrado.
Mas o mais belo dos hinos e que encantou a contadora de histórias Diane Wolkstein, é o poema intitulado A descida de Inana ao Submundo, “a história da mulher que se despiu, em sete portais sucessivos, de tudo que ela havia realizado na vida, até estar nua, com nada restando a não ser sua vontade de renascer”, diz ela em Inanna, Queen of Heaven and Earth. Feliz por ter encontrado a deusa ainda cantada em seu ciclo completo de jovem, madura e anciã, Wolkstein leu e releu o hino, até encontrar seu ritmo e ser capaz de recitá-lo perante uma audiência. “Do Grande Acima ela dirigiu seus ouvidos para o Grande Abaixo”, inicia o hino. E dá continuidade, relacionando os sete templos das sete cidades do país, que Inana abandonou, para descer ao mundo profundo.
Solicitando entrada no kur, o ‘mundo do não retorno’, o guardião pergunta pelo motivo e ela responde que vem por causa de sua irmã mais velha, Ereshkigal, que se contorcia em dores. Foi-lhe exigido, a cada portal, que se desfizesse de uma de suas muitas insígnias, de modo que adentrou nua o grande salão real, dirigindo-se diretamente ao trono. “Então Ereshkigal fitou Inana com os olhos da morte. Ela pronunciou contra ela a palavra da ira. Ela bradou contra ela o grito da culpa". E assim, Inana se tornou um pedaço de carne apodrecendo, pendurada num gancho.
Ao desfazer-se de suas insígnias como Rainha do Céu, Inana vai de encontro aos seus aspectos mais escuros, mais reprimidos. Inana e Ereshkigal são aspectos polarizados de uma mesma totalidade: os aspectos claro e escuro da Grande Deusa. A lua cheia e a lua negra, acertadamente chamada de lua nova, porque é nas profundezas da não existência, do caos, das trevas, que a vida se renova, renasce.
Ao ultrapassar o limiar do kur, o reino da morte sumeriano, passam a prevalecer as leis de Ereshkigal. Nada do que aprendemos na vida nos serve diante da morte, nada nos resta a não ser nos render, nos submeter. Este olhar da morte, impiedoso e frio, não é fácil de sustentar. Como escreve Sylvia Perera em Um Caminho para a Iniciação Feminina, “ele não se deixa enganar por um desempenho responsável e nem por conquistas ao nível da vontade”.
O que traz Inana de volta é a intervenção de Enki, deus da sabedoria, da água e da criatividade. Tomando um pouco da sujeira que estava debaixo de suas unhas pintadas de vermelho, “uma coisinha insignificante e rejeitada, até mesmo invisível anteriormente, e que sobrara do processo criativo maior”, escreve Perera, ele modela duas criaturas que são enviadas ao submundo com a água e o alimento da vida, para se juntarem ao lamento de Ereshkigal.
Aproximando-se da deusa e “ignorando os processos de distância e das leis do mundo superior”, estas criaturas instruídas pelo deus da sabedoria levam o aspecto escuro do feminino a tomar consciência da validade de sua experiência de dor. Ao honrarem o sofrimento e validarem essa experiência, possibilitam a transformação da destruição em generosidade. Como recompensa, ela lhes oferece o rio em toda sua plenitude, os campos plenos de colheita. Mas eles queriam apenas o corpo inerte de Inana que, sendo-lhes concedido, eles reavivam.
O que chama atenção neste hino é que ele nos indica um caminho para reverter a deusa irada em deusa compassiva, ao contrário da maioria dos mitos, que enfatizam a transformação da deusa benéfica em seu aspecto ameaçador. Mas a reversão só é possível honrando, reconhecendo e validando a experiência da dor e suas causas.
E a origem da dor e da ira de Ereshkigal pode ser vislumbrada entre vários fragmentos de outros hinos. Quer eles nos contem que o mundo profundo lhe foi dado como prêmio, ou que ela foi tomada como prêmio pelo mundo profundo, o que revelam é que ela não está lá desde o início. Ela representa o aspecto do feminino que foi relegado ao mundo profundo pelo masculino, aspecto este que falta a Inana, para ser representante da Grande Deusa da Vida e da Morte.
Como se deu a fragmentação da grande deusa? Entre os trechos decifrados, destaca-se o relato do nascimento do deus lua, pai de Inana. O mito relata que a mãe de Ninlil, a jovem deusa do grão, orienta sua filha para banhar-se nas águas claras do rio, o que ela faz com prazer. Enlil, o vento fértil da primavera, vê a jovem e a deseja. Mas como ela não cede aos seus desejos, ele a toma pela força, razão pela qual é banido pelas divindades para o mundo profundo. Grávida, Ninlil, a versão jovem de Ereshkigal, o segue, do mesmo modo que a semente fecundada se aprofunda na terra. As dores de Ereshkigal são as dores de parto da semente brotando.
Assim como Core, a jovem filha de Deméter, a deusa grega do grão, se transforma em Perséfone, a Rainha do Mundo Profundo, também a jovem Ninlil se transforma em Ereshkigal, a Rainha do Grande Abaixo. Mas Perséfone não passa pelas dores do parto, ela não dá o próximo passo em direção à maturidade, ela apenas lamenta a separação da mãe. Ninlil, contudo, opta por seguir seu parceiro e como Ereshkigal, é continuamente produtiva.
Na mitologia sumeriana, a figura da grande deusa já apresenta sua primeira divisão entre acima e abaixo, tornando necessária a descida para o mundo profundo, a fim de recompor a continuidade da vida. A colheita resultante do parir de Ereshkigal é armazenada no silo, este silo que é a própria Inana, sua neta. E ela desce ao mundo de Ereshkigal para buscar sua herança, sua linhagem, sua origem.
Nada nos assegura que Inana tenha realizado sua trajetória até o fim, mas ela pelo menos nos mostra um caminho possível. E cada uma de nós precisa percorrer este caminho para as profundezas de si mesma, tantas vezes quantas forem necessário, para encontrar nossas partes exiladas, recuperá-las e integrá-las na totalidade do que somos.
Só assim, a totalidade da vida e da morte pode ser restaurada em sua integridade. Apenas quando reconhecemos e acolhemos todos os nossos aspectos, podemos recompor nossa integridade e nos tornarmos quem somos verdadeiramente, desde o princípio.
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