sábado, 13 de agosto de 2011

Mitos da criação do mundo

O mito moderno da origem do universo é formulado em uma linguagem científica. Afirmam os cientistas que o universo estava exprimido em um único ponto com tamanho zero, com uma temperatura infinitamente quente. Depois de uma grande explosão (Big  Bang), uma radiação cósmica de fundo se distribuiu uniforme e suavemente em microondas, a sopa primordial.
Esta sopa primordial é formada principalmente de matéria escura (partículas elementares que constituem 90% da massa do universo), misturada com alguma matéria comum, basicamente gases de hidrogênio. Quando os átomos de hidrogênio se combinam para formar traços de hidrogênio molecular, resfriam partes densas do gás, que se contraem. Este resfriamento permite que a matéria comum se separe da matéria escura. Enquanto a matéria comum se contrai na região central desta sopa primordial, a matéria escura continua a se dispersar ao longo de um enorme halo externo.
À medida que a expansão continua, vai ocorrendo uma redução na temperatura da radiação e o universo se torna mais frio e escuro, dando início a um longo período de trevas cósmicas. Com o resfriamento, forças nucleares ou eletromagnéticas atraem partículas que se aglutinam, detendo a expansão em algumas regiões. Estas aglutinações colapsam, isto é, se contraem, formando caroços na sopa primordial.
Devido à ação gravitacional da matéria localizada fora dessas regiões, os caroços começam a girar. Quanto mais colapsam, mais rapidamente giram, formando as proto-galáxias compostas de hidrogênio e hélio, gases que surgiram entre 100 e 250 milhões de anos após o Big Bang, constituindo os sistemas formadores de estrelas.
Estas proto-galáxias, formadas de nuvens de gás primordial, se aglomeram nos nós da rede de filamentos vibrantes que formava a estrutura cósmica primordial. Quando estas nuvens de gás primordial colapsam sob sua própria gravidade, se aquecem e iniciam reações de fusão nuclear, cujo calor é irradiado como brilho. Nascem as primeiras estrelas. Faz-se a luz!
Mas, muito antes do uso da linguagem científica, os seres humanos já haviam formulado seu conhecimento da criação do mundo em uma linguagem que hoje designamos de mitológica.

As escuras águas da não-criação

Para os egípcios, o ato da criação configura um conjunto de eventos sincrônicos, mais do que uma sucessão de fenômenos acontecendo em uma sequência temporal linear. Todos os poderes pré-existem de forma indefinida e não manifesta nas águas primevas, este lugar cósmico do qual todas as expressões de vida emergem no tempo atemporal e ao qual retornam no final de cada era.
Seu mito cosmogônico mais antigo relata que, no começo, antes que o mundo tivesse sido formado, existia apenas uma extensão ilimitada e informe de massa aquosa, envolvida por uma profunda e silenciosa escuridão, que ocultava o poder invisível e incognoscível de toda a vida. Tendo existido por toda eternidade, no silêncio e na profundidade do abismo aquoso, os elementos primevos desta substância primordial, por alguma razão interna, começam a interagir de forma explosiva, até romperem todas as tensões equilibradas que restringiam seus poderes elementares.
Diferenciando-se nessa substância cósmica original, as forças se estruturam em quatro pares de opostos complementares, constituídos cada um de um pólo feminino serpente e um pólo masculino sapo. Enquanto os polos masculinos representam a inconsistência líquida, o espaço em expansão, a escuridão e o oculto, os polos femininos representam, respectivamente, a substância cósmica, a contração no tempo, a luz que ilumina e aquilo que é visível e conhecível. Ao vibrarem, estas forças são articuladas e o ritmo da vida é colocado em movimento. E a partir da energia liberada dentro da matéria primitiva revolta, ergueu-se o primeiro montículo chamado de “Ilha de Fogo”, pois foi de seu horizonte que Ra se elevou e o universo observou o brilho mágico do primeiro nascer do Sol.

Mãe – o oceano primordial

Mas foram os povos agrários da Suméria que nos deixaram o mais antigo nome conhecido de uma divindade criadora do universo. Nammu, a mãe que deu nascimento ao céu e à terra, é descrita em alguns poucos fragmentos extremamente antigos, sendo que o ideograma usado para seu nome significa tanto ‘mãe’ quanto ‘oceano’. Esta mãe-oceano, diretamente associada com as águas uterinas, é o grande útero abissal, o profundo maternal, que encontramos nos mitos de todas as grandes culturas.
Os sumérios se estabeleceram na região localizada entre os rios Tigre e Eufrates, na área que hoje conhecemos como Iraque, do norte de Bagdá até o Golfo Pérsico, desde pelo menos 4500 antes do tempo comum e lá permaneceram até serem conquistados e assimilados pelos babilônios, três mil anos depois. Sua existência, língua, cultura, religião e organização social é amplamente documentada em textos inscritos em tabuletas de argila, que foram desenterradas das areias do deserto arábico.
Em sua cosmologia, encontramos o oceano primordial como a causa primeira, em que foi engendrado o universo. Céu (An) e Terra (Ki) ainda se encontravam intimamente entrelaçados no útero de sua mãe Nammu, quando de seu abraço amoroso surgiu uma substância etérea chamada de lil. Significando algo como vento, respiração ou espírito, esta palavra se aproxima do nosso conceito de ‘atmosfera’. Depois do primogênito Enlil (o Senhor Vento), foram surgindo os demais elementos do mundo criado, incluindo os seres humanos. Todos eles constituem a prole de An-Ki, o universo engendrado nas profundas e férteis águas do oceano primordial. Expandindo-se e entreabrindo-se, Nammu deu passagem aos elementos que compõem o cosmos. Como a mãe do universo, ela é atemporal como a própria vida e sua presença subjaz a tudo que existe. Para os sumérios, Ela é a origem de todas as divindades.
Esta Deusa Mãe Primordial provavelmente não era experimentada como um ser personificado, mas como uma força que atuava através de tudo que é vivo. Assim é que ela pode ser a terra ou o céu, as águas celestes ou terrestres, a montanha ou a caverna, os rios ou o oceano, as estrelas, o sol, a lua. Ou talvez ela seja tudo isto reunido.

A metáfora do parir

O filósofo grego Thales de Mileto chamou estas águas de arché, a “causa primeira no começo de todas as coisas”. Em seu sentido de começo, origem, arché compõe palavras como arcaico e arquétipo. E é neste sentido que entra na composição da palavra matriarcado, que deve ser lida como “na origem, a mãe”.
Um mito dos habitantes pré-helênicos da Grécia, os pelasgos, nos fala de Eurínome, a Deusa de Todas as Coisas, que surgiu nua do Caos e, não encontrando lugar para apoiar seus pés, separou o mar do céu e dançou solitária nas ondas. Nas palavras de Robert Graves, ela dançou em direção ao sul e o vento posto em movimento atrás dela pareceu-lhe algo novo e separado, com o que iniciar um trabalho de criação. Virando-se, ela segurou este vento norte e o esfregou entre as mãos, fazendo surgir a serpente Ófion que, vendo a deusa dançar para se aquecer, excitou-se e se enrolou em volta dela, fecundando-a.
Assumindo a forma de pomba, Eurínome pariu um ovo que, a seu pedido, foi chocado por Ófion, até se romper e deixar emergir todas as coisas que existem: sol, lua, estrelas, planetas, a terra com suas montanhas, rios, plantas e criaturas viventes, todas elas a prole da deusa.
Foram os gregos que denominaram esta unidade primordial de Caos, palavra que se origina do grego khaos, significando fender-se, dividir-se em dois, entreabrir-se, referindo-se simultaneamente ao estado primevo da existência e à força que causa a sua separação. Ao fender-se sob a ação do próprio impulso, a unidade inicial produz o vazio escancarado, semelhante ao que surge quando a boca se abre num bocejo. Quando esta força se fende e se divide em dois, surge um imenso espaço vazio, do qual emerge o cosmos organizado.
E assim como todo animal emerge do interior aquoso do corpo da fêmea, o mundo criado também foi entendido como tendo nascido do oceano-útero cósmico, razão pela qual encontramos o tema das águas primordiais como origem da vida.

O desmembramento no lugar do parir

Os chineses iniciam seu relato sobre a criação do mundo afirmando que, no começo, não havia nada. Longas eras se passaram. Então o nada se tornou algo. E continuam sua história explicando que este algo tinha uma unidade que, passadas outras longas eras, dividiu-se em dois: uma parte feminina, outra masculina. Estas duas partes, num trabalho conjunto, produziram o primeiro ser, nomeado Pan Gu (Antiguidade Enrolada).
Vamos encontrar Pan-Gu no mito chinês da criação, que data do terceiro milênio anterior ao tempo comum. Este mito fala de uma época em que o céu e a terra existiam inextricavelmente entrelaçados, como um ovo de galinha, no qual foi concebido Pan-Gu. Depois de 18.000 anos, esta massa incipiente se entreabriu, o que era claro e leve formou o Céu, o que era escuro e pesado formou a Terra.
Depois disto, durante outros 18.000 anos, o céu aumentava diariamente dez pés em altura, a terra aumentava diariamente dez pés em espessura. E Pan-Gu, entre os dois, aumentava diariamente dez pés em tamanho. Foi assim que Céu e Terra se tornaram separados pela sua distância atual de 90 li.
A história continua em textos posteriores, datando do terceiro século do nosso tempo. Com a morte de Pan-Gu, sua respiração se tornou o vento e as nuvens, sua voz o trovão, seus olhos esquerdo e direito respectivamente o sol e a lua; seus quatro membros e cinco extremidades formaram os quatro quadrantes da terra e as cinco grandes montanhas, enquanto seu sangue formou os rios; seus músculos e veias, os estratos da terra, sua carne o solo, seu cabelo e barba as constelações, sua pele e pêlo corporal as plantas e as árvores, seus dentes e ossos os metais e as pedras, seu tutano o ouro e as pedras preciosas, e seu suor a chuva. Os parasitas em seu corpo, impregnados pelo vento, tornaram-se os seres humanos.
Uma história semelhante é narrada na Edda Poética dos povos nórdicos, uma coletânea de hinos que remontam aos vikings e foram registrados por Snorri Sturluson no século XIII do nosso tempo. Em A Profecia da Sábia (Voluspá), ouvimos que, em tempos remotos, não havia nada, nem areia nem mar, nem as ondas geladas, nem terra alguma, nem os céus elevados, só o Grande Vazio e nada crescia em lugar algum. Um universo, metade gelado e metade quente e abrasador, envolvia este grande vazio, no qual um rio desaguou e congelou na superfície, formando um alicerce. Onde o frio e o quente se encontraram, a geada começou a derreter e suas gotas precipitadas pelo calor formaram Ymir, o gigante de gelo. Da carne de Ymir foi moldado o mundo, de seu sangue surgiu o mar, os penhascos de seus ossos e as árvores de seus cabelos, sua cabeça formando a abóbada celestial.
Mas vem da Mesopotâmia o mito da criação que relata como o universo deixou de emergir do útero da deusa primordial, para ser feito do desmembramento da grande serpente-dragão Tiamat.
Quando as alturas do céu e as profundezas da terra ainda não haviam sido nomeadas e as águas doces (Apsu, o pai) ainda estavam misturadas com as águas salgadas (Tiamat, a mãe), quando nenhum campo ou pântano estava formado e nem deuses existiam, então os grandes deuses foram criados no interior do par primordial. Mas as novas gerações de deuses começaram a perturbar o sossego de Apsu, que decidiu destruí-los, apesar da oposição de Tiamat.
Os deuses mais jovens, contudo, se inteiraram do plano e o mataram, assumindo o comando. Marduk, o jovem deus da próxima geração, nutrido nos seios de deusas, mostrou-se um líder desde o início e os deuses lhe concederam a soberania sobre o mundo. De posse do cetro, do trono, do anel e do raio como arma invencível, Marduk partiu para combater Tiamat.
Tendo matado Tiamat, Marduk repartiu seu corpo como um marisco, uma metade formando o céu e a outra, tornando-se a terra. Erguendo uma montanha sobre a cabeça de Tiamat, furou seus olhos para formar as fontes do Tigre e Eufrates. Ergueu montanhas similares sobre seus seios, que furou para fazer os rios das montanhas orientais que fluem para dentro do Tigre.
Isto faz do épico babilônico Enuma Elish , narrado em uma tabuleta de argila datada de aproximadamente 1580 antes do tempo comum, a origem de todos os mitos de cunho heróico, em que o herói combate e vence as forças originais, entendidas como o caos primordial, para estabelecer uma nova ordem, a ordem patriarcal.
Todos os mitos sobre a criação do mundo partem da idéia de uma unidade primordial que se abre, divide ou explode, seja por um movimento intrínseco ou desígnio próprio, seja por intervenção exterior. O processo que se inicia nesta unidade primordial é descrito com metáforas que remetem ao processo de gestação e nascimento, eventos que ocorrem no interior das fêmeas, onde se inicia o processo da vida. Por isto, na origem está sempre o vazio, o caos, o grande abissal, as águas primordiais, o espaço cósmico que denominamos de Grande Mãe.
Monika von Koss

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