Para além da Dualidade
O cosmos é uma totalidade composta de infinitos elementos distintos, intrinsecamente conectados entre si, formando um campo unificado de energia. Como a grande teia da vida, é desta realidade primordial indivisível que emergem todas as coisas, dela se nutrem e a ela retornam, no eterno ciclo do nascer, morrer e renascer.Sua verdadeira natureza é sem atributos, indefinível, mas onipresente; um continuum eterno de realidade cósmica extremamente sutil, além de qualquer dualidade, ela mesma a origem de todas as polaridades.
Ao se desdobrar, esta unidade primordial cria o mundo manifesto. E como todo desdobramento significa separação, no próprio ato da criação está implicado o princípio da dualidade. Sendo um dos princípios da vida, a dualidade nos possibilita discriminar entre luz e sombra e reconhecer as diferentes formas do nosso mundo.
Ao discriminarmos a miríade de formas existentes, podemos nos orientar no espaço visível, escolher nossos movimentos e definir nossas ações. A vida consciente se torna possível apenas quando duas forças complementares interagem. Assim, não é a dualidade em si que é um problema, mas o fato de darmos preferência a uma das polaridades em detrimento da outra. Ao fazê-lo, a vida se desequilibra.
A dualidade que mais tem impactado nossa atuação no mundo é a de gênero, em que categorias psicológicas fabricadas pela cultura definem o papel que homens e mulheres devem exercer na vida. Em Feminino+Masculino, enfoquei esta dualidade de uma perspectiva mais psicológica, escrevendo extensamente sobre as conotações que sobrecarregam os conceitos de feminino e masculino, dificultando uma relação equilibrada entre os sexos.
Ao avançarmos nas questões de gênero, contudo, nos deparamos com uma camada mais profunda. O conflito maior que vivemos hoje consiste no desequilíbrio entre a Verdade e o Amor. Apesar destas duas qualidades não parecerem ser uma dualidade, se referem a uma camada mais profunda da dualidade entre feminino e masculino. Se olharmos de perto, veremos que em qualquer situação há amor e verdade e, como escrevi em outra ocasião, às vezes há mais verdade do que amor, outras vezes há mais amor do que verdade.
No senso comum, o amor é atribuído ao universo feminino, enquanto a verdade é um atributo masculino. Pelo fato das qualidades masculinas terem predominado durante os últimos milênios, realizamos a busca da verdade sobre o mundo e a vida a partir de um foco mental. Estivemos vivendo sob o predomínio do poder solar, que domina o dia, a ação no plano físico exterior e a atividade mental.
Com isto, deixamos as qualidades caracteristicamente femininas em segundo plano, distanciando-nos do nosso mundo interior, desqualificando nossos sentimentos e nossas emoções. Distanciamo-nos do poder lunar que rege nosso lado obscuro, a essência interna que não é acessível pelos sentidos físicos e pela razão, mas apenas pelo coração.
Assim, podemos entender o conflito entre a dualidade feminino-masculino como um conflito entre amor-verdade, baseado no desequilíbrio entre os aspectos solares e lunares, entre a atividade externa e a experiência interna, em cada pessoa. A base deste conflito é a prevalência da mente, que coloca um mundo de sua própria criação separando a alma e o ser.
Quando permitimos aos processos mentais definirem nosso viver, as experiências do mundo interno, do coração e do espírito, ficam comprometidas, ignoradas ou perdidas. Passamos a viver em um mundo dominado por idéias, crenças e leis que desconsideram nossas experiências emocionais e limitam as nossas possibilidades criativas, que apenas surgem da experiência direta e vivencial com nosso ambiente.
Para restabelecermos a conexão interrompida com a verdadeira alegria dos relacionamentos, o propósito real da vida e a força impulsionadora por trás da criação e do universo, a mente precisa dar lugar ao coração. O caminho para recuperar nossa conexão com a totalidade passa pelo coração, o portal entre nossa experiência pessoal e a cultura, entre nossa alma e nossa essência.
Quando adentramos a escuridão interior e nos familiarizamos com ela, quando passamos a viver a partir da nossa alma e não da nossa mente, quando nossa atitude exterior é orientada pela ética, pelos valores, sonhos e objetivos da nossa alma, quando priorizamos aquilo que expressa nossa alma no mundo, então abrimos o portal do coração e somos levados diretamente ao centro da humanidade.
Quando tiramos nosso foco da mente, que apenas processa conteúdos, a energia se move para onde nossa consciência apontar, e o centro de nossa consciência está no coração. Mas a habilidade de dar e receber amor por meio do coração pertence ao feminino. O caminho para quebrar a tirania da mente passa pelo coração, requer abrirmos o coração.
Apenas quando tivermos dado este passo, quando tivermos vencido o medo de abrir nosso coração para o mundo, poderemos realizar o casamento alquímico interno. Quando a Verdade e o Amor estão em perfeito equilíbrio em tudo que fazemos, apenas então teremos ultrapassado a dualidade e dado um passo decisivo em direção à nossa verdadeira natureza divina.
Quando a verdade interior é expressa e manifesta no exterior, quando a consciência de quem somos no plano divino se torna o centro de nossa identidade, incluindo nossa identidade humana, quando compreendemos que aquilo que está acima é igual ao que está abaixo, o que está dentro é igual ao que está fora, então teremos nos tornado plenamente conscientes. Mas isto só acontece, quando abrimos nosso coração, pois um coração aberto acolhe e abarca a totalidade sem exceção, sem condição, sem julgamento.
Para que o coração possa assumir seu papel em nossa vida, precisamos equilibrar os hemisférios direito e esquerdo do cérebro, nossas qualidades femininas e masculinas. O casamento alquímico do masculino e do feminino, do Amor com a Verdade, que precisa ocorrer em cada um/a de nós, faz surgir uma nova consciência, para além da dualidade.
Na Grécia Antiga, esta integração dos caminhos lunar e solar era realizada por meio dos Grandes Mistérios, aqueles que requeriam entrar na escuridão e presenciar a vida renascer da morte. Dedicados a Deméter e Perséfone, os Grandes Mistérios Eleusianos eram realizados no equinócio de outono, quando a terra se preparava para um tempo de escuridão.
Nós também precisamos entrar na escuridão interior e nos defrontar com aquilo que é primordial em nós. Quando entramos na escuridão, a ausência de luz torna impossível nos orientarmos pelas formas mentais. Precisamos nos orientar pelas nossas sensações e sentimentos, sem qualquer reflexo exterior que nos assegure se estamos indo na direção certa ou não, porque neste escuro interior não há direção, a não ser aquela que nossa alma escolher. Posso contar apenas comigo mesma, com aquilo que sei e vivenciei a partir do meu coração.
Preciso aprender a confiar no amor incondicional irradiado pelo divino em mim e que não faz distinção entre interno e externo, entre eu e o outro, entre divino e humano. Quando sou envolvida pelo amor incondicional que se irradia a partir do meu coração, este portal através do qual se manifesta o divino que sou, e quando o amor incondicional se expande para todas as minhas células e, para além do meu corpo, para todo o espaço que me circunda, então me encontro no centro do universo, este espaço infinito e eterno que abarca o humano e o divino em mim.
Então, e apenas então, a Verdade e o Amor estão em perfeito equilíbrio e caminharemos novamente como Deusas e Deuses pela superfície da Terra, nossa m
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